quinta-feira, janeiro 11, 2007

O que é que quer?

Ela parou e olhou para mim. Foi como se tivesse tirado uma espécie de capa da frente do rosto, da frente dos olhos. Eram os olhos: entre o estúpido e o esperançoso e lugubremente desejosos de uma decepção, tudo ao mesmo tempo. Mas via-se que tinha algum problema. Qual é o seu problema? – disse eu. – Diga-me o que quer. Estou muito ocupado. – Não que eu quisesse apressá-la, mas um homem não tem a vida delas.

- É aquele problema das mulheres – disse ela.

- Ah – disse eu. – Só isso? – Pensei que talvez fosse mais nova do que parecia e a primeira vez que lhe apareceu a tivesse assustado, ou que fosse irregular como costuma acontecer com as raparigas muito novas. – Onde está a tua mãe? Disse eu. Não tem mãe?

- Está acolá na carroça – disse ela.

- Por que não fala com ela antes de tomar remédios? – disse eu. – Qualquer mulher lhe explicaria tudo. – Ela olhou para mim e eu olhei para ela e disse: - Quantos anos tem?

- Dezassete – disse ela.

- Ah – disse eu. Pensei que talvez fosse… – Ela observava-me. Mas, também, pelos olhos todas elas parecem que não têm idade, mas sabem tudo. – És regular de mais ou de menos?

Ela deixou de olhar para mim, mas não se mexeu. – Sim – disse ela. Acho que sim.

- Bem, qual das duas coisas? – disse eu. Não sabe? – É um crime e uma vergonha; mas ao fim e ao cabo depois vão comprá-lo a outro lado. E ela ali parada, sem olhar para mim. – Queres alguma coisa que faça isso parar? – disse eu. – É isso?

- Não – disse ela. – É que… já parou.

- Bem, o que… – A cara dela estava ligeiramente virada para baixo, imóvel, como elas sempre fazem quando falam com um homem para ele não saber o que virá a seguir. – Não é casada, pois não? – disse eu.

- Não.

- Ah – disse eu. E há quanto tempo parou? Cinco meses talvez?

- Só estou de dois – diz ela.

- Bem, aqui na loja não tenho nada do que quer comprar – disse eu – a não ser que queira uma tetina. E o meu conselho é que compre uma, volte para casa e conte ao seu pai, se o tiver, e deixe ele obrigue alguém a comprar-lhe uma licença de casamento. Era só isso que queria?

Mas ela continuava a ali parada a olhar para mim.

- Tenho dinheiro para lhe pagar – disse ela.

- É seu ou ele foi homem que chegasse para lho dar?

- Foi ele que mo deu. Dez dólares. Disse que chegava.

- Na minha farmácia nem mil dólares nem dez cêntimos chegariam – disse eu. Siga o meu conselho, volte para casa e conte ao seu pai ou aos seus irmãos se os tiver ou ao primeiro homem que encontrar na estrada.

Mas ela não se mexeu. O Lafe disse que eu podia comprá-lo na farmácia. Ele disse-me para eu lhe dizer que eu e ele nunca íamos dizer a ninguém que o senhor nos tinha vendido aquilo.

- E eu só queria que esse seu adorado Lafe tivesse vindo ele próprio comprá-lo; isso é que eu queria. Não sei, nessa altura teria um pouco de respeito por ele. E você pode voltar pelo mesmo caminho e contar-lhe o que eu disse… se a estas horas ele não estiver já a caminho do Texas, o que eu não duvido nada. Eu, um farmacêutico respeitável, com uma porta aberta, pai de família e bom cristão, há cinquenta e seis anos nesta cidade. O que me apetece é ir eu próprio contar aos seus pais, se conseguir descobrir quem são.

(in Na minha morte de William Faulkner, Publicações Dom Quixote, 2004: p. 160-162)

Este excerto ilustra a pressão a que uma mulher é submetida quando necessita de recorrer ao aborto. Estão bem patentes o desprezo a que ficam sujeitas e a profunda humilhação de verem a sua vida privada devassada. Actualmente a censura não será tão forte como surge aqui, mas isso deve-se à luta que foi travada em prol do direito destas poderem decidir livremente. É inacreditável como ainda em 2006 houve mulheres que foram a julgadas em Portugal por terem realizado um aborto!

Os defensores do “Sim” pretendem precisamente evitar que isso possa voltar a acontecer. Querem uma lei que dê à mulher a possibilidade de escolher de acordo com a sua consciência. E que, seja qual for a sua decisão, esta não possa ser censurada. Quem vota “Não” pode argumentar com a vida do feto (curiosamente alguns são apoiantes da pena de morte!) mas, o que verdadeiramente está em causa, é o fim da condenação social por este acto. No mundo ideal não haveria abortos, no mundo real escolhe-se a opção com menos danos para o futuro. Entre um aborto clandestino e uma criança indesejada é preferível proporcionar às mulheres a possibilidade de realizarem uma interrupção voluntária da gravidez nas melhores condições. Os apoiantes no “Não” esquecem-se que a mulher que precisar de abortar o fará sempre, independentemente das condições que tiver à sua disposição.

O referendo é daqui a um mês. Eu, obviamente, vou votar SIM.

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10 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Eu também voto SIM claro.
Três pensamentos ou chicotadas se preferirem ;-):
Já que os homens não aparecem como possíveis responsáveis na actual lei nem aparecerão em qualquer futura lei (pois todas as leis sempre foram feitas por machos para os machos...) se calhar só as mulheres deviam votar neste referendo...
E gostariam (homens e mulheres do não) que houvesse uma lei a obrigar as pessoas a terem um filho quando fizessem 23 anos por exemplo, e um segundo quando fizessem 27 e talvez ainda um terceiro após os 30 e antes dos 35 por exemplo em nome da sobrevivência da Portuguesidade e da obrigação de propagar a vida?
Ou é realmente melhor e mais sábio apoiar a responsabilidade da escolha?
Mas ás vezes o que me apetece dizer é que se os machos realmente fizessem mais amor quando fazem sexo em vez de f***r quando fazem sexo talvez não houvesse, com ou sem contraceptivos, tantos "climaxes" indesejados e antes do tempo...

11:29 da tarde, janeiro 12, 2007  
Anonymous Anónimo said...

Eu obviamente que te acompanho..
SIM!!!
:)

Abraço

12:41 da tarde, janeiro 13, 2007  
Blogger sub71 said...

Viva feynboy!

Começo por não concordar contigo lol

Os homens também devem dar a sua opinião. Todos têm o direito de emitir a sua opinião.

Acima de tudo do apoiantes do "Não" são hipócritas. Vão continuar a defender o "Não" em nome dos valores puritanos que sustentam. Logo qualquer argumento que utilizes não os vai demover. A minha esperança é que desta vez quem vota "Sim" não fique em casa.

Acredito também que muitos dos jovens que não puderam votar no outro referendo o façam desta vez e votem maioritariamente no "Sim".

A "responsabilidade da escolha" é aquilo que os defensores do "Não" são incapazes de perceber. Cada casal é que deve decidir quando está em condições de ter filhos.

Independentemente de ser amor ou sexo o contraceptivo dá sempre jeito. Convém não arriscar ;)

Abraço

3:01 da tarde, janeiro 13, 2007  
Blogger sub71 said...

bound,

O "Sim" desta vez ganha ;)

O fracasso do primeiro referendo deve ter servido de emenda aos defensores do "Sim". Desta vez vão todos às urnas. Eu, tal como em 1998, lá estarei para votar SIM.

Abraço

3:05 da tarde, janeiro 13, 2007  
Anonymous Anónimo said...

Quem me dera que o SIM ganhasse, mas nao tenho assim tanta certeza, pois a igreja esta a exercer uma forte pressao em sentido contrario. Resta esperar que os jovens adiram em massa a este referendo. Na minha secçao de voto aposto que vai ganhar o nao,os eleitores sao na sua maioria idosos católicos fervorosos.
Sera que eles se sentem mais felizes quando ouvem nos noticiários que mais uma criança foi morta devido a maus tratos.
Vamos la ver se a sociedade portuguesa evolui.

2:24 da tarde, janeiro 15, 2007  
Blogger sub71 said...

justscarlett,

bem-vinda a este blogue!

Ninguém sabe quem vai ganhar, mas eu acredito que desta vez a vitória esta mais próxima do "Sim". Acredito que no Norte, devido à religião, o "Não" tenha alguma vantagem, mas seria uma surpresa para mim ver o resultado de 1998 repetir-se. Será que Portugal não evoluiu nada?

O ponto que referes sobre os maus-tratos, só mostra a hipocrisia de quem vota no "Não". Preocupam-se tanto com o feto, mas depois vivem com consciência tranquila quando conhecem essas histórias.

São os mesmos hipócritas que depois pedem mais polícias na rua como solução para todos os males do mundo.

9:51 da tarde, janeiro 15, 2007  
Blogger gaijo said...

eu so espero que se ganhar o sim nao seja os partidarios do nao a dizer
-prontos estamos empatados vamos a desforra

pq se foi feito um referendo deviam ser respeitados os resultados...
eu votei sim no 1º

9:47 da tarde, janeiro 16, 2007  
Blogger sub71 said...

Se o NÃO perder - como espero - vão haver por ai muitas pessoas com vontade de desforra :) Mas não vão poder fazer nada. O PM já disse quais eram as regras do jogo e ninguém reclamou. Logo se perderem não podem vir dizer que afinal é preciso outro.

Aliás, um dos grandes argumentos do pessoal do NÃO é o despesismo deste segundo referendo. Um terceiro seria ainda pior!

Eu acredito que desta vez a maturidade dos portugueses é maior e os moderados não se vão deixar impressionar pela campanha moralista no NÃO, nem deixar que sejam os outros a decidir por eles.

Abraço

10:27 da tarde, janeiro 17, 2007  
Blogger _ said...

Sim!

Sim, já que falhou a política do planeamento familiar... já que falhou a introdução da educação sexual nas escolas.

Aguarda-se um melhor encaminhamento das jovens para uma vida saudável e responsável. Aposto que o aborto irá fazer com que a prevenção seja realmente uma política "feroz" e efectiva.

4:45 da tarde, janeiro 30, 2007  
Blogger sub71 said...

Nefer,

o nosso "sim" é contra a hipocrisia. Aqueles que agora estão dispostos a ajudar as mulheres que não têm dinheiro para criar um filho, depois do referendo - se o "não" ganhar - vão voltar a olhar para estas com o desprezo habitual.

Desde 1998 o que é que eles fizeram por essas mulheres? Nada! Elas continuam a ter de recorrer ao "vão de escada".

Contra isso votamos SIM!!!!

Kiss

9:59 da tarde, janeiro 30, 2007  

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