quarta-feira, fevereiro 07, 2007

A criação dum ser humano

Foi publicado no Público de hoje um artigo de opinião de Teresa Joaquim, autora de “Cuidar dos outros, cuidar de si. Questões em torno da Maternidade”, que transcrevo a seguir:

“A identificação da maternidade com a reprodução biológica nega que o mais importante na reprodução humana não é o processo de concepção e gestação, mas a tarefa social, cultural, simbólica e ética de tornar possível a criação de um novo sujeito humano”

(S. Tubert, 1996: 10-11)

Julgo que esta citação diz o que tem estado em jogo na argumentação que tem sido utilizada no contexto da discussão sobre o aborto. Há nesta discussão uma questão recalcada na sociedade portuguesa, a saber, o silêncio, o esquecimento da maternidade, como se até aqui a abordagem realizada fosse atravessada pelo não-dito do que é a maternidade: “[...] esquecimento de que as crianças não são só feitas de carne mas, em certa medida, de desejos, palavras, sonhos, mitos e lendas” (Tubert, 1996), de carne e de alimento, de imaginário e de cultura; de cada vez que se discute esta questão, discute-se a sua transmissão para que algo continue, a sociedade sobreviva.

(…)

Discutir as questões da maternidade (e da paternidade) é, de certo modo, discutir e questionar o modo como se habita a cidade. Como se constrói uma cidadania social e política. Como vivemos uns com os outros. Porque o que está em causa é:

- como dar à luz outros seres no sentido de lhes dar uma vida humana, digna?

- qual é a responsabilidade ética de uma comunidade para que um recém-nascido se torne um ser humano capaz de prometer?

- qual é o próprio fundamento da comunidade, se não esse acto originário que é o nascer?

Nos primórdios da cultura ocidental - nomeadamente na cultura grega - aparece a definição de mulher pela reprodução, pela capacidade que ela tem de dar à luz crianças. A questão não é tanto que as mulheres sejam definidas a partir de um dos pólos da dicotomia natureza/cultura, é sobretudo a desvalorização daquele pólo tanto social como politicamente, como se elas fossem incapazes de transcender essa esfera do corpo, das emoções, dos sentidos, essa capacidade de fazer corpos, quando simultaneamente se lhes pede que elas sejam capazes de uma longa duração, aquela em que um ser inacabado, dependente, in-fans, irá construindo a sua autonomia, a sua independência, a sua fala própria, tornar-se sujeito, capaz de razão.

O modo como o corpo das mulheres foi lido na cultura ocidental permite compreender como as implicações que as leituras, filosóficas e médicas, do corpo da mulher pesaram, e ainda pesam, sobre as possibilidades de vida das mulheres, tendo em conta nomeadamente outras faces bem conhecidas e marcantes nesta história, nas quais as mulheres foram exaltadas (e redimidas das anteriores leituras sobre o seu corpo) por essa capacidade de dar à luz outros seres: de certo modo, muitas das exclusões não são senão a outra face da exaltação da maternidade, a ser compreendida num contexto de altas taxas de mortalidade materna e infantil.

Imagens contraditórias da exaltação da maternidade e do seu peso determinante na construção da identidade feminina, na qual a valorização da virgindade era um elemento importante, estruturante do modelo proposto, simultaneamente às mulheres e às mães. É no caleidoscópio destas imagens que aparentemente se apresentam como antagónicas da mulher, mãe, pureza, impureza, virgindade, maternidade, que se construiu um modelo de feminilidade problemático (e por vezes contraditório). Imagens que ainda hoje persistem sobre as mulheres. Ditas, claro, e expressas de modo diverso (e mesmo aparentemente já esquecidas), mas que, em momentos de controvérsia em torno da maternidade (e da sua face obscura, o aborto), nesses momentos também eles contraditórios, tais imagens aparecem ainda vivazes.

(…)

Neste sentido, hoje, seriam precisos novos conceitos para pensar a maternidade (e a paternidade); o que pode significar, nomeadamente para uma mulher na nossa cultura, a maternidade do ponto de vista simbólico? Como inscrever nessa cultura a questão central do reconhecimento do outro, da relação com o outro que se inicia (ou não) antes do parto: esse “diálogo silencioso no espaço comum do corpo materno”, essa condição de habitação? Ou a dificuldade de pensar o que significa nascer de um corpo de mulher.

(…)

O nascimento é a “aparição de um ser para a vida”. Essa aparição só pode acontecer se as mulheres puderem ter hoje a capacidade e a possibilidade de “serem mães não só de corpos mas de significados sociais”, o que significa não estar ausente dos próprios fundamentos da comunidade humana; ser não só sujeito e “lugar” de reprodução biológica, terra que acolhe uma semente, mas também ser-lhe reconhecida essa “tarefa social, cultural, simbólica e ética” necessária à criação de um novo ser humano. É uma tarefa imensa e, por isso, não penso que se possa “obrigar” uma mulher a esse acto de criação.

Este artigo, e em particular o último paragrafo, é demolidor para todos os partidários do “não”. A educação é fundamental para qualquer ser humano. As nossas opiniões, desejos e memórias são aquilo que nos torna únicos. Nada disto está presente no embrião. Da fragilidade do bebé até ao individuo que se bate pelos seus ideais muito irá mudar. Será que a edificação de um ser estruturado pode começar com pais desinteressados e mesmo relutantes em aceitar o seu novo filho? A maternidade deve ocorrer apenas quando a mulher a coloca na sua lista de prioridades. O recém-nascido deve ser visto e sentido como uma bênção e não como um empecilho.

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4 Comments:

Blogger bound[PL] said...

Concordo contigo :)

Mas se queres q te diga ja ando tao farto de tanta discussao sobre isto q so quero mm ir votar, saber q o sim ganhou e esquecer esta conversa toda da treta!;)

Será assim tao dificil a algumas pessoas respeitarem as decisoes de outros?? enfim.. povo mal habituado!
Andam a precisar de umas chicotadas p entrarem nos eixos!! eheh ;p

Abraço

12:50 da tarde, fevereiro 11, 2007  
Blogger sub71 said...

Eu votei e até tive de estar na fila. Espero que isso se repita por todo o país.

Mais abstenção do que em 1998 era muito mau. Seria o fim do referendo e um atestado de menoridade para todos nós.

Às oito espero ficar com um sorriso de orelha a orelha. Pela vitória do "sim" e por uma boa afluência às urnas.

Mas a campanha já teve as suas vantagens. Agora parece ser consensual que não deve haver a criminalização da mulher. Antes da campanha começar não era!

Abraço

6:31 da tarde, fevereiro 11, 2007  
Blogger solitarioh2005 said...

É tudo um disparate.
Ser contra o aborto não é obrigar a mulher a nada.
É proteger um novo ser.
Ninguém tem direito de matar.
Se a mulher não puder ser mãe dê o filho para adopção.
O filho concebido não tem culpa das incapacidades da mãe.

4:13 da tarde, março 04, 2007  
Blogger sub71 said...

E que tal começar uma discussão sem insultar quem não partilha a sua opinião?

"É tudo um disparate."

Apesar de tudo vou responder. E sem o insultar. Pode ser que assim aprenda alguma coisa para futuras discussões…

Os casais inférteis desejam apenas recém-nascidos saudáveis e de preferência caucasianos. E se a criança para adopção tiver uma doença? Num mundo perfeito ninguém abortava. Mas já sabemos que não é o caso. Também sabemos que o aborto sempre existiu e não ia parar se o "não" ganhasse novamente. Agora, pelo menos, as mulheres que realmente quiserem praticá-lo podem-no fazer com dignidade e menos riscos para a sua saúde.

Repare, se uma mulher está disposta a abortar, colocando em risco a sua vida num aborto sem condições, para quê continuar com esta hipocrisia? Faz de conta que só o feto importa. E as mulheres que morreram ao fazer um aborto ilegal? Já alguma vez pensou nelas?

7:29 da manhã, março 05, 2007  

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