Julgo que esta citação diz o que tem estado em jogo na argumentação que tem sido utilizada no contexto da discussão sobre o aborto. Há nesta discussão uma questão recalcada na sociedade portuguesa, a saber, o silêncio, o esquecimento da maternidade, como se até aqui a abordagem realizada fosse atravessada pelo não-dito do que é a maternidade: “[...] esquecimento de que as crianças não são só feitas de carne mas, em certa medida, de desejos, palavras, sonhos, mitos e lendas” (Tubert, 1996), de carne e de alimento, de imaginário e de cultura; de cada vez que se discute esta questão, discute-se a sua transmissão para que algo continue, a sociedade sobreviva.
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Discutir as questões da maternidade (e da paternidade) é, de certo modo, discutir e questionar o modo como se habita a cidade. Como se constrói uma cidadania social e política. Como vivemos uns com os outros. Porque o que está em causa é:
- como dar à luz outros seres no sentido de lhes dar uma vida humana, digna?
- qual é a responsabilidade ética de uma comunidade para que um recém-nascido se torne um ser humano capaz de prometer?
- qual é o próprio fundamento da comunidade, se não esse acto originário que é o nascer?
Nos primórdios da cultura ocidental - nomeadamente na cultura grega - aparece a definição de mulher pela reprodução, pela capacidade que ela tem de dar à luz crianças. A questão não é tanto que as mulheres sejam definidas a partir de um dos pólos da dicotomia natureza/cultura, é sobretudo a desvalorização daquele pólo tanto social como politicamente, como se elas fossem incapazes de transcender essa esfera do corpo, das emoções, dos sentidos, essa capacidade de fazer corpos, quando simultaneamente se lhes pede que elas sejam capazes de uma longa duração, aquela em que um ser inacabado, dependente, in-fans, irá construindo a sua autonomia, a sua independência, a sua fala própria, tornar-se sujeito, capaz de razão.
O modo como o corpo das mulheres foi lido na cultura ocidental permite compreender como as implicações que as leituras, filosóficas e médicas, do corpo da mulher pesaram, e ainda pesam, sobre as possibilidades de vida das mulheres, tendo em conta nomeadamente outras faces bem conhecidas e marcantes nesta história, nas quais as mulheres foram exaltadas (e redimidas das anteriores leituras sobre o seu corpo) por essa capacidade de dar à luz outros seres: de certo modo, muitas das exclusões não são senão a outra face da exaltação da maternidade, a ser compreendida num contexto de altas taxas de mortalidade materna e infantil.
Imagens contraditórias da exaltação da maternidade e do seu peso determinante na construção da identidade feminina, na qual a valorização da virgindade era um elemento importante, estruturante do modelo proposto, simultaneamente às mulheres e às mães. É no caleidoscópio destas imagens que aparentemente se apresentam como antagónicas da mulher, mãe, pureza, impureza, virgindade, maternidade, que se construiu um modelo de feminilidade problemático (e por vezes contraditório). Imagens que ainda hoje persistem sobre as mulheres. Ditas, claro, e expressas de modo diverso (e mesmo aparentemente já esquecidas), mas que, em momentos de controvérsia em torno da maternidade (e da sua face obscura, o aborto), nesses momentos também eles contraditórios, tais imagens aparecem ainda vivazes.
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Neste sentido, hoje, seriam precisos novos conceitos para pensar a maternidade (e a paternidade); o que pode significar, nomeadamente para uma mulher na nossa cultura, a maternidade do ponto de vista simbólico? Como inscrever nessa cultura a questão central do reconhecimento do outro, da relação com o outro que se inicia (ou não) antes do parto: esse “diálogo silencioso no espaço comum do corpo materno”, essa condição de habitação? Ou a dificuldade de pensar o que significa nascer de um corpo de mulher.
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O nascimento é a “aparição de um ser para a vida”. Essa aparição só pode acontecer se as mulheres puderem ter hoje a capacidade e a possibilidade de “serem mães não só de corpos mas de significados sociais”, o que significa não estar ausente dos próprios fundamentos da comunidade humana; ser não só sujeito e “lugar” de reprodução biológica, terra que acolhe uma semente, mas também ser-lhe reconhecida essa “tarefa social, cultural, simbólica e ética” necessária à criação de um novo ser humano. É uma tarefa imensa e, por isso, não penso que se possa “obrigar” uma mulher a esse acto de criação.